Para geΓ³grafo, partidos tradicionais tornaram-se incapazes de enfrentar capitalismo reconfigurado. Mas grupos como Syriza e Podemos multiplicam alcance das “polΓticas do quotidiano” praticadas pela juventude anti-sistema
Myke Watson entrevista David Harvey, para a Verso Books | TraduΓ§Γ£o Evelyn Petersen
Conhecido pela abordagem nΓ£o convencional que introduziu no debate sobre o Direito Γ Cidade e por sua leitura heterodoxa da obra de Karl Marx, o geΓ³grafo David Havey parece cada vez mais disposto a participar do esforΓ§o pela renovaΓ§Γ£o do pensamento e lutas anticapitalistas. A partir de 2011, ele jΓ‘ examinara atentamente movimentos como a Primavera Γrabe, os Indignados e o Occupy. Agora, aos 79 anos, segue com atenΓ§Γ£o formaΓ§Γ΅es polΓticas que, embora tendo o marxismo como fonte (nΓ£o ΓΊnica…) de inspiraΓ§Γ£o, diferem em muito dos partidos tradicionais de esquerda — nos programas, prΓ‘ticas e mΓ©todos de organizaΓ§Γ£o. Volta os olhos, em especial, ao Syriza grego e Podemos espanhol.
Na entrevista a seguir, Harvey fala brevemente — porΓ©m de forma incisiva — sobre estes novos movimentos-partidos. Vale atentar para trΓͺs pontos suscitados pelo geΓ³grafo: a) Segundo ele, o cenΓ‘rio das lutas polΓticas e culturais Γ© menos sombrio do que vezes parece. A esquerda histΓ³rica perdeu a capacidade de dialogar com os novos movimentos. No entanto, eles multiplicam-se, ao reunir um nΓΊmero crescente de pessoas que, em meio a um mundo desumanizado, “buscam uma forma de existΓͺncia nΓ£o-alienada e esperam trazer de volta algum sentido Γ prΓ³pria vida”; b) Syriza e Podemos nΓ£o se definem como anti-capitalistas, mas isso Γ© o que menos importa. Eles dΓ£o sentido e forΓ§a Γ revolta de quem se sente desamparado pela reduΓ§Γ£o dos direitos sociais. Ao fazΓͺ-lo desafiam o principal projeto do sistema: uma nova rodada de reconcentraΓ§Γ£o de riquezas, expressa nas polΓticas de “austeridade” ou “ajuste fiscal”; c) Talvez o calcanhar-de-aquiles das polΓticas hoje hegemΓ΄nicas esteja na Europa. Ao empurrarem a GrΓ©cia para fora do euro, a oligarquia financeira pode produzir uma tempestade de consequΓͺncias imprevisΓveis. Segue a entrevista (A.M.).
Em seu ΓΊltimo livro vocΓͺ afirma que Marx optou pelo humanismo revolucionΓ‘rio em vez do dogmatismo teleolΓ³gico. Onde seria possΓvel encontrar um espaΓ§o para a concretizaΓ§Γ£o deste humanismo revolucionΓ‘rio?
Isto nΓ£o Γ© uma coisa que precisamos inventar – tem muita gente aΓ fora em conflito com o mundo em que em vive, que busca uma forma de existΓͺncia nΓ£o-alienada e espera trazer de volta algum sentido Γ prΓ³pria vida. Penso que o problema estΓ‘ na incapacidade da esquerda histΓ³rica em saber lidar com este movimento, que pode realmente modificar o mundo. No momento, os movimentos religiosos (como o evangΓ©lico) tΓͺm se apropriado desta busca por sentido, o que pode implicar, politicamente, na transformaΓ§Γ£o destes movimentos em algo totalmente diferente. Penso, por exemplo, no Γ³dio contra a corrupΓ§Γ£o, no fascismo em ascensΓ£o na Europa e no radicalismo do Tea Party norte-americano.
O livro encerra com uma discussΓ£o sobre as trΓͺs contradiΓ§Γ΅es perigosas (crescimento ilimitado, a questΓ£o ambiental e alienaΓ§Γ£o total) e diversos caminhos de mudanΓ§a. Isto seria um tipo de programa ou a revolta precisa se basear em uma espΓ©cie de coalizΓ£o fluida de diferentes formas de insatisfaΓ§Γ£o?
A convergΓͺncia entre diversas formas de oposiΓ§Γ£o sempre terΓ‘ importΓ’ncia fundamental, conforme vimos em Istambul, com o parque Gezi, e no Brasil. O ativismo polΓtico Γ© de importΓ’ncia fundamental e, novamente, creio que o problema esteja na incapacidade da esquerda em canalizΓ‘-lo. HΓ‘ diversas razΓ΅es para isto, mas penso que o motivo principal seja o fracasso da esquerda em abandonar a sua Γͺnfase tradicional na produΓ§Γ£o em favor de uma polΓtica da vida cotidiana. Ao meu ver, a polΓtica do cotidiano Γ© o ponto crΓtico a partir do qual podem se desenvolver as energias revolucionΓ‘rias, e onde jΓ‘ ocorrem atividades orientadas para a definiΓ§Γ£o de uma vida nΓ£o-alienada. Tais atividades estΓ£o antes relacionadas ao espaΓ§o de vida do que ao espaΓ§o de trabalho. Syriza e Podemos nos oferecem um primeiro vislumbre deste projeto polΓtico – nΓ£o sΓ£o revolucionΓ‘rios puros, mas despertaram grande interesse.
O Syriza tem desempenhado um papel trΓ‘gico, no sentido clΓ‘ssico do termo. EstΓ‘ efetivamente salvando o euro (que tem sido instrumento de violΓͺncia de classe) tambΓ©m para defender a ideia de Europa, uma das bandeiras da esquerda nas ΓΊltimas dΓ©cadas. VocΓͺ acha que o partido encontrarΓ‘ espaΓ§o polΓtico ou acabarΓ‘ fracassando?
Neste caso, afirmar o que seria um sucesso ou fracasso nΓ£o Γ© fΓ‘cil. Em muitos aspectos Syriza irΓ‘ fracassar a curto prazo. Mas acredito que a longo prazo terΓ‘ alcanΓ§ado uma vitΓ³ria por ter suscitado questΓ΅es que nΓ£o poderiam ter sido ignoradas. No momento, a dΓΊvida gira em torno da democracia e o seu significado, quando vocΓͺ tem Angela Merkel governando de modo autocrΓ‘tico, decidindo a vida de todos os europeus. ChegarΓ‘ o momento em que a opiniΓ£o pΓΊblica irΓ‘ clamar pela derrubada dos governos autocrΓ‘ticos. Em ΓΊltimo caso, se Merkel e os lΓderes europeus nΓ£o mudarem suas posiΓ§Γ΅es e forΓ§arem a GrΓ©cia a sair da Europa (como provavelmente farΓ£o), as consequΓͺncias serΓ£o bem mais sΓ©rias do que hoje se imagina. PolΓticos normalmente cometem graves erros de julgamento, e eu considero este um desses casos.
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No livro vocΓͺ prevΓͺ um novo ciclo de revoltas. PorΓ©m, uma avaliaΓ§Γ£o dos ΓΊltimos anos terΓ‘ que reconhecer que a Primavera Γrabe foi um desastre e que o Occupy nΓ£o foi capaz de se transformar em uma forΓ§a polΓtica eficaz. VocΓͺ acha que a resposta estΓ‘ em um partido como o Podemos, que tem sido capaz de dar expressΓ£o polΓtica aos protestos de 2011 na Espanha?
O Syriza e o Podemos abriram um espaΓ§o polΓtico, pois algo novo estΓ‘ acontecendo. E o que seria isto? NΓ£o sou capaz de responder. Logicamente aqueles que pertencem Γ esquerda anticapitalista os acusarΓ£o de “reformistas”. O que atΓ© pode ser verdade, mas tambΓ©m foram as primeiras forΓ§as a promover determinadas polΓticas, e uma vez iniciado este novo caminho, surgirΓ£o novas possibilidades. Romper de uma vez por todas com o mantra da “austeridade” e esmagar o poder da troika [FMI, Banco Central Europeu e ComissΓ£o Europeia, que impΓ΅em as polΓticas econΓ΄micas nos paΓses europeus em crise] abriria, acredito, um espaΓ§o para novas perspectivas, que poderiam ser desenvolvidas adiante. Na atual situaΓ§Γ£o, penso que estes modelos de partidos que vemos surgir na Europa, que comeΓ§am a definir alternativas de esquerdas atualmente em falta, sΓ£o as melhores opΓ§Γ΅es. Eles provavelmente serΓ£o populistas – com todos os limites e perigos que o populismo implica –, mas como eu disse, trata-se de um movimento: ele abre espaΓ§os, e o modo como utilizamos estes espaΓ§os depende de nossa capacidade de perguntar, “Ok, agora chegamos atΓ© aqui, o que devemos fazer agora?”.
VocΓͺ acredita que o neoliberalismo foi apenas um momento de mudanΓ§a que serΓ‘ superado pela reorganizaΓ§Γ£o do capital pΓ³s-crise? Ou acha que ele serΓ‘ reforΓ§ado com novo vigor?
Eu diria que o neoliberalismo nunca esteve tΓ£o forte quanto agora: o que Γ© a “austeridade” efetivamente, senΓ£o a transferΓͺncia de recursos das classes baixas e mΓ©dias paras as classes altas? Se olharmos as informaΓ§Γ΅es sobre quem se beneficiou com as intervenΓ§Γ΅es estatais desde a crise de 2008, veremos que foi o 1% da populaΓ§Γ£o, ou melhor, o 0,1%. Γ lΓ³gico que a resposta para isto depende de como se define o neoliberalismo, e minha definiΓ§Γ£o (um projeto da classe capitalista) talvez seja algo distinta da de outros estudiosos.
Quais foram as novas “regras do jogo” instauradas no sistema capitalista apΓ³s 1970?
Por exemplo, no caso de um conflito entre bem-estar coletivo e resgate dos bancos, salva-se os bancos. Em 2008, estas regras foram aplicadas de um modo bastante claro: salvaram os bancos. PorΓ©m, poderΓamos facilmente ter resolvido os problemas daqueles que foram despejados, atendendo a necessidade da populaΓ§Γ£o por moradia, e sΓ³ entΓ£o ter dado atenΓ§Γ£o Γ crise financeira. A mesma coisa ocorreu com a GrΓ©cia, a quem foi emprestado um bocado de dinheiro que foi direto para os bancos franceses e alemΓ£es.
Por que, entΓ£o, foi preciso que os gregos atuassem como intermediΓ‘rios na transferΓͺncia entre os governos e bancos?
A estrutura em funcionamento permite que a Alemanha nΓ£o tenha que salvar diretamente os bancos alemΓ£es, ou a FranΓ§a os bancos franceses: sem a GrΓ©cia no meio, teria ficado Γ³bvio o que estavam fazendo. Ao passo que, daquele outro modo, o fato de terem despejado todo este montante de dinheiro faz parecer que a GrΓ©cia foi tratada com generosidade, quando na verdade estes fundos foram diretamente para os bancos.
VocΓͺ mencionou o 1%. Como marxista, vocΓͺ considera este dado apenas um slogan eficiente, vΓͺ nele algum valor analΓtico ou acha que ele sΓ³ ajuda a desviar a atenΓ§Γ£o do conceito da luta de classes?
Se aceitamos o materialismo histΓ³rico-geogrΓ‘fico, temos que reconhecer que as contradiΓ§Γ΅es evoluem constantemente, e o mesmo deve ocorrer com nossas categorias. Ao se referir ao “1%”, portanto, o Occupy foi bem sucedido em introduzir este conceito no debate pΓΊblico. Γ evidente que a riqueza deste 1% aumentou de forma maciΓ§a, como mostram Piketty e todos os dados. Em outras palavras, falar sobre o 1% Γ© reconhecer que criamos uma oligarquia global, que nΓ£o coincide com a classe capitalista, mas que estΓ‘ no centro dela. Γ como uma palavra-chave que serve para descrever o que a oligarquia global estΓ‘ fazendo, dizendo e pensando.
Fonte: http://outraspalavras.net/

