Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado?



É, eu sei. Entra ano, sai ano, e o papo é quase sempre o mesmo. Nós não alimentamos uma boa relação com os nossos políticos, mas por alguma razão inexplicável ainda queremos entregar parte considerável da nossa vida nas mãos do governo. A razão para esse paradoxo é certamente uma das grandes questões de nosso tempo. Foi pensando nela que o cientista político Bruno Garschagen publicou e acaba de lançar "Pare de Acreditar no Governo - Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado", pela editora Record.

A obra já nasce peça fundamental para entender a construção da mentalidade brasileira e, não por acaso, logo nos primeiros dias saltou entre os livros mais vendidos do país.

Foi para entender um pouquinho melhor essa história - e sobre o processo de construção da obra - que bati um papo com Garschagen. A entrevista foi publicada originalmente no Spotniks.


Rodrigo da Silva: Afinal, por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado?

Bruno Garschagen: Bom, essa pergunta tá diluída ao longo do livro. No fundo não há uma resposta única. Há vários esboços de resposta. Mas, um dos argumentos centrais, no caso desse amor do brasileiro pelo Estado, é que esse foi um processo de construção política que resultou numa mentalidade cultural, e essa mentalidade acabou se traduzindo na forma de incentivos e de informação dispersa na sociedade. E no fundo, quando você está imerso numa sociedade em que as instituições políticas, em que o debate político, em que toda conversa em termos de política, gira em torno do que o governo deve fazer - e dificilmente se colocou o questionamento do que o governo não deve fazer - é natural que você tenha uma relação com o Estado de extrema dependência, mesmo quando não precisa ou não depende diretamente dele. Fica essa mentalidade que o Estado deve fazer tudo ou pouco menos do que tudo.

Meu livro começa com o desembarque da tripulação portuguesa no Brasil e faz um passeio pela história até o ainda atual governo central. E eu me concentrei no poder executivo federal. Aí, obviamente, falando do poder executivo federal quando o Brasil era colônia, me referindo ao poder de Lisboa e depois aos nossos imperadores, o golpe militar que derruba a monarquia - e a nossa história é pródiga de golpes militares -, quando faço um passeio pela história, contando os governos do período republicano. Eu tento mostrar a forma como o poder central, que sempre teve muito poder no Brasil, se tornou um dos grandes atores na disseminação desse tipo de mentalidade. Por que que os brasileiros não confiam nos políticos? É o paradoxo que eu coloco no subtítulo do meu livro. Ao mesmo tempo em que nós, brasileiros, ao longo da história, achamos que o governo deve fazer muitas coisas, ou deve fazer todas as coisas, não confiamos nos políticos. Esse paradoxo acontece por que? Porque o brasileiro faz uma separação bastante excêntrica entre o governo e os políticos que o compõe, como se o governo fosse uma entidade separada dos homens, como se o governo fosse formado por anjos, por entidades celestiais - pra usar a famosa metáfora dos pais fundadores dos Estados Unidos. E nessa contradição, ao mesmo tempo em que o governo promete as coisas e não cumpre, nesse descumprimento dessas expectativas, nessa frustração, essa insatisfação é dirigida diretamente aos políticos - o que é mais engraçado ainda: o governo não cumpre e a realidade volta ao seu plano concreto. E aí os brasileiros percebem por quem o governo é formado.


O Lançamento do livro ocorreu na Livraria Cultura, na noite de 25/05/2015

Rodrigo da Silva A pergunta inevitável é: como mudar essa realidade?

Bruno Garschagen: É preciso várias ações. Falando de hoje, trazendo a discussão para o que está acontecendo agora no Brasil, nós estamos passando por um período de transação bastante rico e esse período dará bons frutos se nós fizermos tudo certo agora, como eu acho que uma parte da sociedade brasileira tem feito. Eu acho que esse período de transação começa no início dos anos 90, e nesse momento , o que a gente tá vivendo é o fato de uma parte da sociedade brasileira ter percebido isso, e eu acho que passou a perceber pela atuação de indivíduos e instituições que, já tendo descoberto essa armadilha, têm trabalhado para desfazer ou para mostrar que essa armadilha existe e propôr uma alternativa em termos de ideias, de projetos políticos, de agenda política. Então o trabalho que tem sido feito, de participação e de militância ativa, faz com que a gente possa ter algum tipo de esperança de que isso possa ser mudado, e uma vez mudado no plano da sociedade e no âmbito cultural, nós poderemos formar políticos que sairão já com esse tipo de mentalidade diferente e, uma vez estando nas instituições políticas, consigam mudar o que está implementado de maneira institucional. Mas o que eu acho que é muito importante, e as passeatas desse ano mostraram muito bem isso, é que essa participação de uma parte da população, mostrando que há uma alternativa, é importante porque as pessoas estão em busca de algo que não seja isso - que é, no fundo, a origem da sua insatisfação. E ao verem que há algo diferente, a população tem onde canalizar as suas expectativas, onde podemos começar um processo de construção de baixo para cima.


Rodrigo da Silva: O historiador americano David Landes aplica o patrimonialismo a uma perspectiva cultural. Por outro lado, economistas como o turco Daron Acemoglu afirmam que esse cenário faz parte da construção das nossas instituições econômicas, que incentivam essa dependência. Qual caminho você escolhe no livro?

Bruno Garschagen: A espinha dorsal do livro é a dimensão cultural. Mas como eu vejo a cultura? Como um grande círculo, dentro do qual estão os círculos da economia, da política e da justiça. Quando escrevo sobre cultura, trato de uma forma muito mais ampla. Por causa disso, eu acabo tratando de tudo. E não consigo desassociar essa mudança cultural do problema econômico e político, porque no fundo essas esferas estão interligadas. A minha perspectiva é cultural e eu acho que essa mudança será, no fim, a chave de tudo, pra mudança econômica e política.


Rodrigo da Silva E qual é a nossa literatura na área? Quais foram os seus expoentes sobre essa abordagem cultural histórica no Brasil?

Bruno Garschagen: Há vários autores que tratam de forma bastante específica alguns problemas. Eu vou citar dois que eu usei no livro, que pegam de forma muito inteligente a maneira como essa dimensão cultural atua na esfera política e econômica: o professor Antonio Paim e o professor Ricardo Vélez-Rodríguez. São dois autores vivos com uma obra extensa, que tratam de política brasileira, que eu recomendaria porque conseguem conjugar de forma muito inteligente essas dimensões.

Rodrigo da Silva: Como foi esse processo pra escrever o livro?

Bruno Garschagen: Esse livro foi proposto em forma de projeto ao editor Carlos Andreazza (da Editora Record) numa conversa informal, e eu tinha o assunto resumido no título. Eu parti do título, que resumia o objeto daquilo que eu queria investigar. O Andreazza comprou a ideia e durante todo processo deu total apoio. O processo de pesquisa e escrita do livro durou de janeiro a outubro de 2014. Foram dez meses de investigação e elaboração do livro. Mas esse livro começou a ser pensado muito tempo antes, em 2008, quando eu comecei a me envolver de forma mais direta - ou a me preocupar de forma mais direta - com o problema político do Brasil. Foi um processo de leituras muito esparsas, crescendo de forma muito gradual. A partir dessa preocupação, discutindo os temas do país que eu gostaria de ler, a partir do meu trabalho no Ordem Livre, como podcaster do Instituto Mises Brasil, convivendo com as pessoas do movimento das ideias da liberdade, vendo que esse era sempre um assunto muito recorrente. E eu primeiro queria descobrir se isso era verdade, se o brasileiro era tão estatista como nós imaginávamos. Uma coisa era ter essa informação de forma intuitiva e outra era a investigação. Saber, primeiro: "há alguma pesquisa empírica que demostra que o brasileiro realmente ama o Estado?". Eu fui descobrir que sim. Essa pesquisa já tinha sido publicada num livro chamado "A cabeça do brasileiro". Com essa pesquisa na mão, "bom, isso existe realmente". Depois eu fui investigar teoricamente, historicamente, sociologicamente, antropologicamente de que forma isso foi sendo construído ao longo da nossa história, como é que isso chegou aqui e, principalmente, se houve em algum momento histórico, alguma tentativa de quebrar essa ideia patrimonialista que chega aqui, se desenvolve com os portugueses, e vai sendo ampliado e modernizado. No fundo, no meu livro eu trago a teoria e trago também dados empíricos mostrando de que forma isso acontece e qual o resultado disso.


Rodrigo da Silva O livro aborda a herança cultural portuguesa. Como é ter um escritor como o João Pereira Coutinho, português, escrevendo o prefácio dele?

Bruno Garschagen: Eu acho que esse era o caminho natural. A escolha do João Pereira Coutinho para escrever o prefácio tem várias razões. A primeira delas é, como o livro trata Brasil e Portugal, por conta dessa herança histórica, não haveria melhor escolha do que um autor português, que conhece a história de Portugal, conhece uma parte da história brasileira e que tem, de forma muito clara, a noção de que isso que eu trato no livro é uma grande armadilha que Portugal caiu e também não saiu. E ele tem a exata dimensão dessa herança que nos foi legada. Além disso, é um estudioso das ideias da liberdade, assim como eu. A outra razão é que, além de eu ter sido aluno e orientando dele no mestrado, atualmente sou orientando dele no doutorado. Isso me permitiu ter uma aproximação maior e conhecer ainda mais aquilo que ele conhece e desenvolve em seus estudos. Ele reunia essas qualidades que permitiriam ter um prefácio brilhante, como ele escreveu, e adequado à proposta do livro. E tem uma coisa que eu queria complementar dessa relação Brasil e Portugal - eu só me senti confortável ao escrever esse livro, não apenas depois dessa leitura que eu fiz, mas por ter tido uma experiência de ter morado em Portugal durante 2 anos, que fez com que eu tivesse uma visão de Portugal, dos portugueses, da realidade portuguesa e de como se desenvolveu a política portuguesa in loco. Ter tido essa experiência, de ser um brasileiro que estudou a história brasileira e ter tido essa experiência em Portugal e ter lá estudado a história de Portugal, fez com que eu me sentisse muito confortável ao tratar dessa relação Brasil e Portugal.

E eu queria complementar que o livro foi pensado e escrito para o leitor não especializado. Ele foi pensado e escrito com uma linguagem clara, concisa, fácil e bem humorada. Eu tentei, com o meu texto, reunir todas as características que nos fazem brasileiros no melhor sentido - um livro plural, que tenta mostrar aquelas abordagens que eu achava mais adequadas ao sentido do livro, com um texto fácil, um texto voltado a todo e qualquer brasileiro que queira conhecer a história do Brasil - ou a história oculta do Brasil - tentando explicar esse nosso paradoxo: afinal, por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado?

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