Uma batalha se aproxima pela alma da Europa e a extrema-direita estΓ‘ marchando como se estivesse em 1099. Por isso Γ© necessΓ‘rio resistir chamar de “combatentes” os assassinos de Paris e de “defensores da civilizaΓ§Γ£o ocidental” os cartunistas da Charlie Hebdo.
Por John Feffer, em Foreign Policy in Focus | TraduΓ§Γ£o: Vinicius Gomes
Na primeira Cruzada, o caminho de luta contra os infiΓ©is muΓ§ulmanos em JerusalΓ©m, os peregrinos armados fizeram entre si uma pergunta provocativa: por que devemos rumar tΓ£o longe para matar pessoas que mal conhecemos, quando nΓ³s podemos simplesmente massacrar infiΓ©is mais prΓ³ximos de casa. EntΓ£o, foi assim que os cruzados do sΓ©culo XI entraram em alguns dos primeiros genocΓdios na Europa contra os judeus. Esses ataques de fΓΊria antissemitas no coraΓ§Γ£o do continente contavam com a vantagem de ajudar no financiamento da primeira Cruzada, uma vez que os peregrinos se apropriavam da riqueza dos judeus que eles matavam.
Mais que uma cruzada diria atΓ© se trata de um teatro armado e proclamado de ato terrorista...! e o mundo seguindo a sugestΓ£o dos globalistas, frentes de direita em todo o mundo...Em fim a ignorΓ’ncia por parte de milhΓ΅es de cegos e marionetes...Pobre mundo!A Europa estΓ‘ mais uma vez testemunhando o efeito colateral dos conflitos no Oriente MΓ©dio. Extremistas que estΓ£o envolvidos em modernas cruzadas na regiΓ£o – ou se frustraram em fazer a jornada ao Iraque e Γ SΓria – fizeram a si mesmos uma pergunta muito similar Γ quela de suas contrapartes do sΓ©culo XI: por que nΓ£o matar infiΓ©is que estΓ£o logo ali do que um infiel tΓ£o distante?
A questΓ£o Γ© tΓ£o horrenda hoje quanto foi mais de 900 anos atrΓ‘s – assim como o Γ© sua resposta, como o mundo testemunhou semana passada na redaΓ§Γ£o da revista Charlie Hebdo e do mercado kosher em Paris.
Em ambos os casos, os cruzados acreditam que suas aΓ§Γ΅es eram de importΓ’ncia mundial e histΓ³rica. No sΓ©culo XI, foi o papa Urbano II que fez o chamado Γ s armas, transformando sedentΓ‘rios cristΓ£os em predadores globais. Hoje, sΓ£o tipos como Estado IslΓ’mico e al-Qaeda que estΓ£o pedindo que seus seguidores matem os hereges. Mas, assim como os pogroms iniciais, assim como o massacre de 2011 por Anders Breivik na Noruega ou os assassinatos Γ©tnicos em sΓ©rie de turcos na Alemanha, por neonazistas entre 2000 e 2007, as recentes atrocidades na FranΓ§a nΓ£o sΓ£o nada alΓ©m de atos criminosos.
Isso nΓ£o Γ©, em outras palavras, um duelo entre as forΓ§as da iluminaΓ§Γ£o e as forΓ§as da barbΓ‘rie. Precisa-se resistir Γ tentaΓ§Γ£o de conferir o status de combatentes aos assassinos, assim como o status de defensores da civilizaΓ§Γ£o ao Charlie Hebdo.
A verdadeira batalha
Essas matanΓ§as podem nΓ£o constituir uma guerra, mas elas apontam um profundo conflito dentro da Europa. Esse conflito nΓ£o Γ© sobre qual religiΓ£o Γ© a ΓΊnica e verdadeira religiΓ£o. Γ sobre a prΓ³pria identidade do continente.
No sΓ©culo XI, o que animou os cruzados nΓ£o foi apenas o status de JerusΓ‘lem, mas tambΓ©m o temor de que o islΓ£ desembarcasse nas praias da Europa – na realidade, os muΓ§ulmanos jΓ‘ tinham um pΓ© firme na penΓnsula ibΓ©rica (Espanha e Portugal). Hoje, um medo semelhante anima os islamofΓ³bicos e os detratores da imigraΓ§Γ£o na Europa. Eles temem que sua velha visΓ£o de uma Europa cristΓ£ predominantemente branca – com fronteiras claras definindo quem Γ© francΓͺs, quem Γ© alemΓ£o e que nΓ£o nΓ£o pertence Γ aconchegante cultura da “civilizaΓ§Γ£o ocidental” – esteja rapidamente desaparecendo. Eles desaprovam tanto a eliminaΓ§Γ£o das fronteiras internas para maior integraΓ§Γ£o europeia, assim como as transformaΓ§Γ΅es demogrΓ‘ficas por conta da imigraΓ§Γ£o. Eles lutam desesperadamente para preservar a heranΓ§a cristΓ£ do continente.
Essas mudanΓ§as deram igniΓ§Γ£o Γ primeira onda do sentimento anti-imigraΓ§Γ£o. Em 1968, Enoch Powell realizou seu discurso infame sobre “rios de sangue” aos conservadores britΓ’nicos, onde ele previu um futuro de violΓͺncia por conta do fluxo de imigrantes vindos das antigas colΓ΄nias. A Frente Nacional comeΓ§ou a mobilizar esse sentimento na FranΓ§a no comeΓ§o da dΓ©cada de 1970, assim como o xenofΓ³bico Partido Republicano na Alemanha, em 1983. Apesar de os “rios de sangue” de Powell nΓ£o terem vingado, a semente de anti-imigraΓ§Γ£o na polΓtica europeia foi crescendo cada vez mais virulenta e a Europa continuou a mudar. As guerras na era pΓ³s-Guerra Fria – na BΓ³snia, Kosovo, Norte da Γfrica e no Oriente MΓ©dio – levaram para dentro do continente refugiados e migrantes, assim como as perspectivas de uma Europa unificada atraΓram pessoas do mundo inteiro.
As mudanΓ§as demogrΓ‘ficas na Europa na ΓΊltima dΓ©cada tΓͺm sido dramΓ‘ticas: de acordo com o censo populacional da ONU, entre 2005 e 2013, a populaΓ§Γ£o imigrante na SuΓΓ§a saltou de 22,9% para 28,9%; na Espanha foi de 10,7% para 13,8%; na ItΓ‘lia, 4,2% para 9,8%; na SuΓ©cia, 12,3% para 15,9%; na Dinamarca, 7,2% para 9,9%; na FinlΓ’ndia, 2,9% para 5,4%; e no Reino Unido, de 8,9% para 12,4%.
Tais aumentos tΓ£o rΓ‘pidos e em tΓ£o curtos perΓodos de tempo criaram uma ansiedade em populaΓ§Γ΅es que nΓ£o consideram que seus paΓses sejam “sociedades imigrantes”, como Estados Unidos ou AustrΓ‘lia.
Uma islamofobia de conveniΓͺncia
No interior da Alemanha, a organizaΓ§Γ£o Europeus Patriotas contra a IslamizaΓ§Γ£o do Ocidente (Pediga, sigla em alemΓ£o) provou-se ser enormemente popular e um constrangimento para os polΓticos alemΓ£es no alto escalΓ£o.
Essa semana, os organizadores do Pegida realizaram uma marcha em Dresden, na esteira das mortes em Paris, e atraΓram 25 mil pessoas apesar dos pedidos da chanceler alemΓ£ Angela Merkel e outras figuras polΓticas para que as pessoas ficassem em casa. Apesar de uma contra-demonstraΓ§Γ£o contra o Pegida, tambΓ©m em Dresden, ter atraΓdo 35 mil pessoas, a organizaΓ§Γ£o xenofΓ³bica estΓ‘ ganhando forΓ§a com mais marchas planejadas em outras cidades da Alemanha e atΓ© mesmo em outros paΓses.
Sem surpresa alguma, dada sua mensagem anti-imigraΓ§Γ£o e anti-muΓ§ulmana, o grupo atraiu um grupo hardcore de extremistas associados a clubes de futebol e gangues de motoqueiros, mas nΓ£o se engane: o sentimento anti-imigraΓ§Γ£o e islamofΓ³bico Γ© muito popular atΓ© mesmo entre os elementos pretensamente respeitΓ‘veis na Alemanha.
Na Inglaterra, enquanto isso, o fervor anti-imigraΓ§Γ£o catapultou o Partido da IndependΓͺncia do Reino Unido (Ukip, sigla em inglΓͺs) para o terceiro lugar nas ΓΊltimas eleiΓ§Γ΅es. Na esteira das tragΓ©dias na FranΓ§a, o lΓder da sigla, Nigel Farage, falou de uma “quinta coluna” dentro dos paΓses europeus “que tem nossos passaportes, [mas] nos odeiam” – um sentimento que aumentou e muito sua popularidade. Obviamente, Farage Γ© sempre justo em sua xenofobia: no ano passado, quando novas regulaΓ§Γ΅es trabalhistas foram aprovadas, dando o direito aos cidadΓ£os da RomΓͺnia de trabalhar em qualquer lugar na UniΓ£o Europeia, ele disse que “qualquer pessoa normal e razoΓ‘vel teria perfeitamente o direito de ficar preocupado se um grupo de romenos se mudar para a casa ao lado”.
Mas a organizaΓ§Γ£o que melhor se posicionou para surfar na onda islamofΓ³bica que estΓ‘ engolindo a FranΓ§a Γ© a Frente Nacional.
Antes dos recentes assassinatos em Paris, Marine Le Pen jΓ‘ liderava algumas pesquisas para as eleiΓ§Γ΅es presidenciais em 2017, e seu partido estava no topo das intenΓ§Γ΅es de votos para eleiΓ§Γ΅es locais, agora em marΓ§o. Le Pen clamou por uma reinstituiΓ§Γ£o de controle de fronteiras e da pena de morte, o que faria a FranΓ§a destoar do resto da Europa. Ela Γ© o rosto do novo extremismo: suficientemente liberal em alguns tΓ³picos (divorciada, prΓ³-aborto), mas tΓ£o agressivamente intolerante quanto seus predecessores, como mΓ©todo para encantar sua base.
A islamofobia desses movimentos de extrema-direita Γ©, por muitos motivos, acidental. Eles trafegam em um sentimento anti-islΓ’mico porque Γ© popular e mais palatΓ‘vel do que, por exemplo, o racismo e a xenofobia. Γ temporada de caΓ§a e intolerΓ’ncia aos muΓ§ulmanos, porΓ©m, essa islamofobia Γ© apenas a ponta da lanΓ§a – o verdadeiro desejo da extrema-direita Γ© manter fora da Europa todo e qualquer tipo de imigrante.
Evitando os rios de sangue
A primeira Cruzada “libertou” JerusalΓ©m em 1099 em um grande banho de sangue, com os cruzados trucidando tanto muΓ§ulmanos quanto judeus, na cidade sagrada. Foi a primeira de meia dΓΊzia de cruzadas que atravessou a Europa e os prΓ³ximos dois sΓ©culos. As vΓtimas dos ΓΊltimos cruzados incluΓram pagΓ£os, cristΓ£os ortodoxos, hereges albigenses e, atΓ© mesmo, durante a quarta Cruzada, a populaΓ§Γ£o catΓ³lica de Zara, onde hoje Γ© a CroΓ‘cia.
O ciclo de violΓͺncia iniciada pelo chamado religioso Γ s armas do papa Urbano II ceifou vidas de todos os credos e produziu tambΓ©m grande parte da violΓͺncia de europeus contra europeus. Extremistas de todos os lados adorariam ver o retorno das Cruzadas. O Estado IslΓ’mico e fragmentos da al-Qaeda gostariam de ver rios de sangue nas ruas da Europa, e a extrema-direita acredita que uma guerra ampla e sem fim contra um inimigo como esse Γ© um caminho para o poder polΓtico – uma vez no poder, eles irΓ£o ter o seu prΓ³prio 11 de Setembro para assim acabar com a integraΓ§Γ£o europeia, levantar um enorme muro ao redor do continente e comeΓ§ar as deportaΓ§Γ΅es.
EsqueΓ§a essa falsa propaganda de Ocidente versus Islamismo. Isso Γ© historicamente e conceitualmente incorreto. Os dois estΓ£o basicamente do mesmo lado contra os crimes do radicalismo. A verdadeira batalha Γ© pela alma da Europa e a extrema-direita estΓ‘ marchando como se estivesse em 1099.
Foto de Capa: Foreign Policy in Focus
Fonte: http://www.revistaforum.com.br
