ViolΓͺncia sexual nΓ£o Γ© apenas problema de homens doentes. Cresce em sociedade que investe milhΓ΅es em venda de sutiΓ£s e maquiagem para meninas de 6 anos
Por Lais Fontenelle
No ultimo mΓͺs, um triste episΓ³dio sobre abuso sexual infantil invadiu as mΓdias e nos fez parar para refletir sobre o olhar que a sociedade atual, adoecida e machista, tem para mulheres e meninas. Demorei a decidir se escreveria ou nΓ£o sobre o ocorrido. A demora se deu, talvez, por um desejo de preservar um pouco mais a menina, ou simplesmente porque o tempo demorou a passar para a digestΓ£o do fato. Contudo, como mulher, mΓ£e de menina e ativista pelos direitos da infΓ’ncia, nΓ£o poderia me omitir. Poderia parecer uma aceitação tΓ‘cita dos fatos, e eu nΓ£o aceito os fatos. NΓ£o podemos mais fechar os olhos para a falta de valores e de limites da sociedade de consumo contemporΓ’nea β em que tudo, atΓ© as meninas, transformam-se em mercadoria.
Para quem nΓ£o sabe, Valentina teve que ser valente jΓ‘ aos 12 anos de idade. ApΓ³s sua primeira aparição no reality show de culinΓ‘ria MasterChef JΓΊnior, foi bombardeada nas redes sociais β nΓ£o por elogios Γ s suas habilidades, mas pelo assΓ©dio sexual de milhares de homens adultos. O episΓ³dio teve grande repercussΓ£o social, desencadeando reaçáes de proteção Γ infΓ’ncia e repΓΊdio aos responsΓ‘veis. A emissora que veicula o programa divulgou nota lamentando o ocorrido. Os pais, indignados, evitaram falar.
A campanha #meuprimeiroassedio, mobilização contra a cultura do estupro criada pelo coletivo feminista, trouxe à tona pelas redes sociais duros relatos de milhares de mulheres, hoje jÑ adultas, ainda marcadas pelos assédios e abusos sofridos desde a mais tenra idade, não só por desconhecidos, mas por homens bem próximos.
NΓ£o Γ© novidade que estamos sendo assaltados pela cultura do estupro e da pedofilia. Basta lembrar que βnovinhaβ Γ© o termo mais usado na busca em sites de pornografia no Brasil. O mesmo acontece com βteenβ em diversos paΓses do mundo, demonstrando que acontecimentos como o do ΓΊltimo mΓͺs, na estreia do programa Masterchef, sΓ£o mais comuns do que gostarΓamos de pensar. Outros dados mais antigos da WCF (World Childhood Foundation), mostram que no Brasil existem mais de 241 rotas de trΓ‘fico de crianΓ§as e adolescentes para fins de exploração sexual e 1.820 pontos de exploração sexual infantil nas rodovias federais. De acordo com o Disque 100, serviΓ§o que recebe e encaminha denΓΊncias desse tipo de todo o Brasil, da Secretaria de Direitos Humanos da PresidΓͺncia da RepΓΊblica, em 2012 foram registradas 37.726 denΓΊncias de violΓͺncia sexual contra crianΓ§as e adolescentes em todo o Brasil. Em 2013, esse nΓΊmero caiu para 31.895.
Seria talvez desnecessΓ‘rio relembrar que, segundo a lei, qualquer tipo de relação de natureza sexual com crianΓ§as Γ© estupro e, portanto, crime. Uma crianΓ§a, pela peculiar fase de desenvolvimento psΓquico, cognitivo e emocional em que se encontra, nΓ£o pode ter relação sexual consensual. Por ser crianΓ§a Γ© vulnerΓ‘vel, sem condiçáes de tomar esse tipo de decisΓ£o. Sendo assim, que fique claro: sexo com menores de 14 anos Γ© crime.
Ocorre que, em nossa cultura de consumo, a pedofilia ou estupro nΓ£o sΓ£o problemas isolados, de homens doentes. SΓ£o tambΓ©m fruto do imaginΓ‘rio de uma sociedade que aceita a venda de sutiΓ£s com bojo para meninas de 8 anos e investe milhΓ΅es em publicidade de maquiagem para meninas de 6 anos, erotizando-as precocemente na tentativa de transformΓ‘-las em mulheres objeto, para vender.
Parece natural, hoje, crianΓ§as com milhΓ΅es de seguidores em shows ou nas redes danΓ§ando funk com trejeitos sensuais e letras erΓ³ticas, como o caso da Mc Melody, ou meninas de 11 anos seminuas em ensaios fotogrΓ‘ficos de moda β como apontei em artigo sobre o Caso Vogue Kids, levado ao MinistΓ©rio PΓΊblico e cuja decisΓ£o judicial tirou a revista de circulação nacional em menos de 48 horas. Outro dado igualmente importante Γ©: 65% das meninas declararam usar o dinheiro da exploração sexual para comprar celular, tΓͺnis, roupa o que demonstra que a exploração sexual nΓ£o se restringe a bolsΓ΅es de pobreza e se manifesta de diversas formas, assim como o desejo de consumo nΓ£o Γ© despertado apenas naqueles investidos de poder aquisitivo segundo pesquisa da WCF.
ReforΓ§o o papel da cultura de consumo para afirmar, mais uma vez, que a culpa ou responsabilidade pelos abusos sofridos nΓ£o Γ© das meninas. Elas sΓ£o vitimadas pelo assΓ©dio β nΓ£o sΓ³ de homens, mas de toda uma cultura que lucra com seu corpo. VΓtimas de uma sociedade que nΓ£o as protege β antes, sΓ³ as expΓ΅e. Γ comum hoje vermos os fatos distorcidos em discursos tipo βas meninas jΓ‘ tΓͺm sexualidade de mulher adulta ou usam saias e shorts provocativos para atrair a atenção masculinaβ. Discurso esse que as responsabiliza pelo que sofreram e reforΓ§a a cultura do estupro, na qual o agressor torna-se vΓtima, e nΓ£o autor de um crime que nΓ£o poderia ficar impune.
Outro ponto que nΓ£o pode ficar fora desse debate Γ© a responsabilidade enorme que os pais tΓͺm, hoje, ao assumir o papel de educadores em tempos de apelo ao consumo em mΓdias e redes sociais, como jΓ‘ debati em artigos anteriores (aqui e aqui). Os velhos conselhos passados de mΓ£es para filhas β βnΓ£o aceite balas de estranhos, siga em frente ao ouvir assobios na sua direção, nunca pegue caronaβ β caem por terra diante da complexidade das relaçáes experimentadas na rede, onde crianΓ§as e adolescentes acessam, sem filtro, o mundo adulto e seus perigos.
A partir do momento em que burlamos o limite de idade para criar canais no Youtube ou contas no Instagram e Facebook para nossos filhos, estamos consentindo em abrir as portas para o desconhecido. Essa Γ© nossa responsabilidade enquanto pais, alΓ©m, Γ© claro, de educar nossas meninas β e meninos tambΓ©m β para se proteger, nΓ£o tolerar abusos e a denunciΓ‘-los quando acontecerem. JΓ‘ mΓ£es e pais de meninos tΓͺm o dever de educΓ‘-los com outro olhar para o sexo oposto, mais empΓ‘tico, protetor e respeitoso.
Quando deformamos a imagem de uma crianΓ§a, como no episΓ³dio de Valentina, estamos colocando em risco seus direitos. Em 20 de novembro comemora-se a Convenção dos Direitos das CrianΓ§as e Adolescentes da ONU, que nΓ£o tem saΓdo do papel. Γ tempo de olharmos para Valentina e tantas outras crianΓ§as como seres em formação que sΓ£o sujeitos de direitos. Porque destituΓdas de direitos, sΓ£o vΓtimas. Infelizmente, muitas vezes dentro de suas prΓ³prias casas, no convΓvio familiar ou ambiente escolar.
FaΓ§amos valer o artigo 227 da nossa Constituição Federal, que afirma ser dever da famΓlia, da sociedade e do Estado assegurar Γ crianΓ§a e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito Γ vida, Γ saΓΊde, Γ alimentação, Γ educação, ao lazer, Γ profissionalização, Γ cultura, Γ dignidade, ao respeito, Γ liberdade e Γ convivΓͺncia familiar e comunitΓ‘ria. Espero que minha menina possa ver florescer no Brasil uma cultura mais humana, feminina e respeitosa para ela e todas as meninas e meninos deste paΓs.
Fonte: http://outraspalavras.net