No mundo contemporâneo convivemos cotidianamente com inovações tecnológicas, possibilidades de relacionamentos virtuais (sejam eles amorosos ou não), mobilizações por meio das redes sociais e vislumbres acerca da tão famigerada inteligência artificial. As informações que nos chegam pela rede nem sempre são verídicas e suscitam novas especulações sobre a ética e as intenções ideológicas presentes por trás de cada postagem. A inter-relação entre homem e máquina atinge atualmente um nível jamais visto na história, gerando questionamentos e temores acerca do que ainda está por vir. Neste sentido, Alan Turing, pioneiro da informática e criptólogo da Segunda Guerra Mundial, foi um visionário ao refletir, em 1950, sobre a capacidade de pensar das máquinas em seu artigo intitulado “Computing Machinery and inteligence”, no qual ele parte do questionamento sobre a possibilidade das máquinas interagirem com seres humanos sem que o ser humano em questão a identifique enquanto máquina: se isso fosse possível, poderíamos então afirmar que a máquina seria capaz de pensar.
Excelente artigo bem fundamentado e acima de tudo coerente com o mundo em que sobrevivemos com todos os questionamentos possíveis.
Essa reflexão acerca da relação entre homem e máquina permeia vários momentos do pensamento humano. Em 1637, no seu “Discurso Sobre o Método”, René Descartes já havia pensado sobre isso, observando que as máquinas, naquele contexto, seriam capazes de responder apenas às simples interações com seres humanos de forma limitada, nunca ultrapassando barreiras comunicacionais que qualquer homem ou mulher poderiam quebrar tranquilamente. Descartes não vislumbrou, porém, o futuro, até mesmo porque em um tempo tão remoto era difícil imaginar como seria o século 21, e muito menos que uma máquina poderia ser confundida com um ser humano, enganando uma plateia.
Na primeira semana de junho de 2014, cinco computadores foram testados na Royal Society, em Londres, com o intuito de tentar enganar seres humanos durante conversas baseadas em texto. Apesar de outra máquina intitulada Eliza já ter conseguido tal façanha no EUA, o evento foi noticiado na imprensa como sendo a primeira vez que um algoritmo de computador conseguiu enganar seres humanos, neste caso, um terço dos juízes selecionados para o processo. A máquina criada pelo russo Vladimir Veselov e pelo ucraniano Eugene Demchenko causou frisson no meio de especialistas em tecnologia e estudiosos das ciências humanas em todo o planeta acerca de questões como segurança na rede e crimes virtuais ou, mais amplamente analisando, sobre como seriam as relações a partir de agora no mundo, já que não podemos distinguir o que é homem e o que é máquina. Seria o início de uma dominação aos moldes do que foi retratado no filme “Matrix”, dos irmãos Wachowski, de 1999?
Apesar de ser uma realidade que traz reflexões variadas sobre o tema, devemos também nos atentar para o fato de que os maiores feitos no âmbito da chamada “Inteligência Artificial” se dão por meio de extensos bancos de dados programados para gerar ilusões em seres humanos, porém, de fato, nunca raciocinaram plenamente como nós no sentido de pensar e imaginar. Ademais, as interfaces textuais de computadores, por mais evoluídas que sejam, ainda estão limitadas a programações algorítmicas, não podendo ser consideradas inteligentes, pois não entendem o que foge ao universo numérico, por exemplo, emoções, sentimentos ou subjetividades próprias de nós humanos. A noção de inteligência não se restringe a perguntas e respostas ou mesmo a uma conversa, uma vez que a linguagem também pode ser codificada.
Essa profícua busca por extensões cibernéticas de nosso próprio corpo e pensamento é objeto de discussão da ciência desde tempos antigos e parece, à luz do pensamento freudiano, uma busca constante do homem para aproximar-se de sua concepção ocidental de Deus, se tornando uma espécie de “Deus protético”. Em seus estudos em relação à cultura e à civilização, Sigmund Freud tece uma abordagem psicanalítica da sociedade a fim de investigar as origens da eterna busca pela felicidade inerente à humanidade. Neste sentido, o autor reflete acerca da ideia do ser-humano e seu desejo narcísico e arrogante de intervir na natureza, criando formas e mecanismos de dominação e suporte em relação às suas limitações.
Em outras palavras, essa realidade presente no mundo contemporâneo, relativa ao diálogo dos indivíduos com as máquinas que antes era vista como fruto da imaginação e amplamente representada em filmes de ficção científica, é agora aplicada em forma de próteses mecânicas automatizadas, placas de metais introjetadas na pele ou dentro do organismo com funções pré-determinadas. A mecanização povoa hoje nossas vidas com computadores, celulares e diversas outras plataformas que funcionam para auxiliar-nos em nosso cotidiano. Sejam em relação à saúde, à estética, ao armazenamento de informações, ou da utilização de células-tronco como forma de criação de órgãos e combate a anomalias, sejam suportes tecnológicos que, desde a revolução industrial, possibilitam um maior alcance às capacidades físicas limitadas do ser humano (como telescópios e binóculos permitindo um maior alcance à visão), ou mesmo as câmeras de vídeo e fotografia, discos de música e mp3/mp4 (que propiciam ao ser humano materializar suas memórias auditivas e visuais, bem como reproduzi-las conforme suas escolhas e preferências).
De forma geral, tudo isso nada mais é que a busca incessante do ser-humano pela felicidade, que hoje se associa mais ao Ter que ao Ser, na qual a vaidade e a arrogância superam a beleza contemplativa e compelem as relações humanas. O mundo moderno se mostra, desta forma, repleto de angústias e problemas emocionais aflorados. Já estamos vivendo o apocalipse exposto em “Matrix” e muito bem adaptado à vida cotidiana em “Her”, de Spike Jonze, como uma profunda reflexão sobre as relações humanas, as transformações que sofremos pelo meio tecnológico e o vazio que eventualmente pode nos consumir. O problema do mundo não está no futuro ou no passado, e sim na vida presente que é esvaziada de sentido. Esse presente deixa de existir não apenas por ser um constante choque entre o passado e o futuro, mas, principalmente, porque estamos “pré-ocupados” demais para nos ocuparmos dele.
Frederico Carvalho Felipe é mestrando em Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás.